sexta-feira, 17 de junho de 2011

a transformação de alice

alice tinha vindo de uma aldeia lá do norte, de uma família onde abundavam irmãos e trabalho no campo. trabalhara desde que se lembra de ser menina, desde que tivera algum tino para ir fazendo pequenas tarefas que ajudavam a mãe na sua infindavel jornada de trabalho.
de modo que não era de estranhar que na sua memória habitasse uma mãe extenuada na eterna luta do trabalho do campo e de casa, onde nenhum homem mexia uma palha.
quando se otrnou uma jovem rapariga começou a acompanhar uma família rica lá da terra, como ama das crianças pequenas, uns fedelhos impossíveis que ela aturava estoicamente só para poder sair de casa durante o verão, ir à praia e ao algarve, coisa impossível de sonhar com a sua propria família.
quando completou os dezoito anos anunciou que iria para a universidade e, na sua teimosia silenciosa, venceu a resistencia de todos. escapuliu-se para o outro extremo do país para estudar no primeiro curso em que viu garantida a sua entrada.
chegou à universidade pelas suas proprias mãos e daí para a frente nunca mais dependeu de ninguém. na universidade foi tudo mais dificil do que esperava.
as intelectuais achavam que ela era burra, apesar de lhe pedirem os cadernos quando chegava a altura das frequencias. as outras, as giras, achavam-na uma labrega, feiosa e puritana. Alguns professores gozavam-na por ser ignorante e insegura. mas alice persistiu, cerrou os dentes, limpou o suor que se lhe formava por cima do lábio superior sempre que começava a sentir-se insegura e tratou de acabar o curso. entricheirou-se num part-time a arrumar livros numa biblioteca escura de uma fundação poderosa da cidade.
deixou-se ficar.
enamorou-se por um colega de turma. um tipo alto, que era militar e que gostava de outra. uma daquelas que a gozava. mas filou-se-lhe e quando deu por si namorava com ele. acabaram a viver juntos, num apartamento comprado a meias. uma coisa horrível que lhe custou mais do que toda a sua vida de trabalho e resignação.
o sexo era um nojo, doía-lhe, fazia-a sentir-se porca. tudo lhe parecia errado. em sonhos aparecia-lhe a mãe com o seu ar de reprovação silencioso. casou na tentativa vã de apagar o pecado em que julgava viver. por essa altura já não suportava o homem que lhe fazia lembrar o pai e os irmãos.
deu por si a viver a vida da mãe, ainda que a umas boas centenas de km, numa casa limpa e já num emprego relativamente bem pago.
um dia lembrou-se de dizer ao homem que mais valia dormirem em quartos separados. ela dava-lhe sexo uma vez por semana e ele deixava-a em paz. o homem aceitou. era um cobarde preguiçoso e alice começou a perceber como viver com ele.
ninguém sabe como mas acabou por mandar o homem embora. ou isso ou ele sentiu-se tão mal que acabou por deixa-la.

de um momento para o outro alice alcançou tudo o que, secretamente, sempre quis: uma casa para viver sozinha. é verdade que continuava a ser o apartamento onde vivera com o único homem que alguma vez conhecera mas agora era dela. por alguma razão a tal fundação ficou com ela. que organização não quereria uma pessoa a trabalhar em regime de total dedicação, sem outro interesse além do próprio trabalho?
alice desabrochou, encontrou no trabalho dedicado a sua fonte de prazer, a sua razão de viver.
a cidade vê-a sair de casa muito cedo e regressar muito depois de toda a gente. mas, ultimamente até aprendeu a sorrir.

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