terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

doem-me as pestanas

É uma mulher-rapariga muito bonita que me entra pela sala. Quando a olho com mais atenção percebo que o seu ar jovial é mais aparente e reconheço os sinais que me enganaram: o cabelo farto e anelado muito comprido, as botas rasas, a roupa de malha preta e roxa. Não sei bem que estilo é aquele mas reconheço-o.
Mais tarde é que reparo nas madeixas de cabelos brancos e no ar cansado, estranhamente cansado, que lhe rouba coerência.
Uma noite atrás da outra durante algumas horas, imobilizadas numa sala, fazem-me perceber - finalmente, que há uma mulher prisioneira naquele corpo juvenil. O Corpo sim é a armadilha. O corpo esse estranho ser que nos materializa e que, em condições normais, é nosso aliado.
O corpo da M aprisiona-a porque não lhe permite liberdade de movimentos, porque a reduz a um cansaço tremendo depois de executar a mais simples das tarefas do dia a dia. É um corpo perfeito, esguio, seco de gorduras e de qualquer outro problema visível.
O tempo passa e este corpo perde capacidades: perde força, perde mobilidade, reduz-lhe o espaço de manobra. E ela aprendeu a defender-se:

tenho os meus truques; deixo tudo ao nível das mãos, uso roupas de malha, largas, fáceis de puxar para baixo, assim não preciso de levantar os braços. veja as minhas botas, têm fecho e é fácil tirá-las e, nos piores dias, o esquentador é o meu amigo.
o pior, diz-me é ter que lidar com as expressões das pessoas quando me sento para descansar: parece que estão a pensar "lá está esta preguiçosa a mandriar"!


3 comentários:

Rita Camões disse...

neste texto podias perfeitamente estar a falar de mim:( é dificil, principalmente que os outros vejam que nem tudo o que parece é...

Beijos para ti e para a tua amiga...

S disse...

imagino que sim. há tantos, tantos mundos mesmo ao nosso lado e nós estamos sempre tão desatentos...

de cada vez que olhamos sem ver, que julgamos sem pensar ficamos mais pobres.

esta rapariga sofre de fibromialgia - uma doença sobre a qual sei muito pouco mas que, só neste último meio mês, me apresentou duas pessoas (mulheres jovens) com problemas desta natureza. e é incrível porque a doença tem incidências diferentes em cada uma delas: uma é mais a um nível físico e a outra a nível mental.

Dores disse...

Excelente "post" S.

Porque chama a atenção para várias coisas importantes. Entre as várias, estou especialmente sensível ao que os outros,(onde estamos incluídos muitas vezes)se permitem pensar, e dizer (de forma verbal e não verbal)acerca dos que encontramos e sobre quem pouco ou nada sabemos.
Impressiona-me muito a forma como ainda somos condicionados e continuamos a condicionar, pela via dos juízos levianos, automáticos, mal formados: "parece que estão a pensar lá está esta preguiçosa a mandriar"