terça-feira, 24 de setembro de 2013

Em tempo de autarquicas


A quantidade de lixo que polui as nossas cidades atinge proporções pornográficas: cartazes, outdoors, desdobráveis de todo o tipo, brindes, carros com altifalantes e mais uma parafernália de quejandos que não esclarecem em nada o cidadão, não acrescentam nada mas antes indignam quem se vê em dificuldades para comprar bens de primeira necessidade como um pacote de leite, um pão ou os medicamentos de que tanto precisa.
Terão os partidos políticos, os órgãos de poder, a própria comunicação social chegado a um estado de divorcio tal com a realidade, que continuam a alimentar este monstro sem que nada lhes sacuda a consciência?
Deixaremos nós, mais uma vez, que tudo se passe exactissimamente da forma como se tem passado, sem que uma palha se levante, um grito se faça ouvir, um não redondo, claro, audível ecoe por esse país fora?

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

a leoa que ruge

todas as mulheres e todas as historias que aqui conto são reais e cruzaram a minha vida.  se as meço em palavras é porque me afectaram ainda que, na maioria das vezes, estas mulheres não me sejam próximas.
mas esta mulher leoa é como eu, é minha amiga, somos parecidas em muitas coisas mas não somos muito intimas. coisa que, lamentando, aceito naturalmente porque as contingências assim o ditam. as minhas e as dela.
numa manhã de trabalho igual a outras cruzamo-nos no corredor cheio de gente, chamou-me e disse-me muito baixinho: perdi o meu bebé. perdi o meu filho. fiquei atordoada. nunca tinha ouvido nada semelhante da boca de ninguém e ainda menos de uma pessoa de quem gosto tanto. abracei-a. perguntei-lhe o que aconteceu. comecei a chorar com ela.
nos dias que se seguiram trouxe-a no pensamento e no coração: um misto de compaixão e de medo porque houve momentos em que receei que desistisse.
foram dias à espera que o corpo resolvesse e expulsasse a vida que tinha criado. ela resolveu que não ficaria em casa e forçou-se a trabalhar dias inteiros, durante horas, em pé, em cima de saltos, a falar com uma data de gente, a expiar uma dor física e moral que eu imagino excruciante. pergunto-me se se estaria a castigar. disse-me mais do que uma vez que estava farta da vida e eu assustei-me.
o corpo não resolveu e a ajuda médica necessária foi ainda mais dolorosa.
passaram meses. eu acho que passarão anos e ela nunca recuperará. não porque não seja forte. não porque não tenha uma fibra moral inquestionável. ou porque lhe falte quem a ame muito. nada disso.
conta muitas vezes que a alma lhe saiu do corpo. eu sei que foi assim. não me parece que haja descrição mais crua e mais exacta para uma dor assim.

sonhar não paga imposto

é uma rapariguita ignorante e maltratada no corpo errado. às vezes a natureza engana-se e prega umas partidas destas. imagino que isto já seja suficientemente doloroso para quem tem uma estrutura familiar e social minimamente saudável. nem quero pensar no vendaval que varreu a vida desta filha do infortúnio.
pediu-me que a trate por alexandra, ao que assenti, sacudindo o cabelo às madeixas, o queixinho corajoso a tremer enquanto imitava uma dessas poses supostamente muito femininas que nunca vemos realmente em mulher nenhuma. a mala a abanicar no braço meio dobrado mas estendido para  a frente, a outra mão na anca, uma alarvidade qualquer a soar dos fundos e eu a concordar em tratar por alexandra o alexandre.
a alexandra e a sua mala não me incomodam. nem as canetas de todas as cores com que gosta de enfeitar o caderno onde escreve quase compulsivamente.
mas numa manhã morna e interminável perguntou-me se sabia que existe uma erva da felicidade, muito longe numas montanhas muito altas cujo nome lera num livro chamado as bruxas de avalon pelo que era certinho que existia e que ela havia de a encontrar.
e o rol de perguntas e comentários impensáveis foi de tal ordem que às tantas já não atinava com uma resposta minimamente sensata para lhe dar. até à ultima em que me contou que encontrou uma casinha, (e até já tem a planta da casa na cabeça) e já sabe onde quer derrubar uma parede e construir não sei o quê. diz que a vai comprar por mil euros.
perguntei-lhe se era arrendar. disse-me que não, que tem contactos, que lhe devem dinheiro por coisas que eu nem sonho e que tem um livro qualquer de bruxaria e que a mulher lhe vai vender a casa, que é um buraco, por esse dinheiro.
pronto não me lembrei de nada para lhe dizer. ainda bem.